Olhos ávidos, mãos trêmulas,
mordia os lábios de nervoso. Esperou ali, uns metros atrás, contendo sua
ansiedade, até a multidão que se amontoava para conferir os resultados
dispersar-se. Andou a passadas largas até o muro onde se afixava o edital.
Atônita, procurava com rapidez, letra L, letra M, Maria das Almas, Maria das
Cruzes... e lá estava: Maria das Dores. Em seu rosto, abriu-se um sorriso.
Mas não era um sorriso qualquer. Não como os abertos
mecanicamente de acordo com as normas sociais de cordialidade. Era um sorriso
de olhos marejados. Toda a tensão acumulada até aquele momento se desvanecia,
transformada em êxtase. Sucesso, após tanta luta! Tanto trabalho sofrido, muito
mais do que todos os presentes ali um dia hão de ter.
Maria olha em volta. Vê centenas de pessoas. Centenas de
rostos. Concentra-se em alguns rostos jovens, um pequeno grupo. Deviam ter uns
quase vinte anos, ostentando camisetas com o emblema de seus respectivos
cursinhos, os quais custam os olhos da cara aos pais. Ornamentavam-se com
correntes, penduricalhos, brincos, piercings, tatuagens, cabelos coloridos.
Engraçado, na juventude de dona Maria não havia dessas coisas. O banho de lama
ela até entendia, mas não havia mais idade para uma senhora participar daquele
rito de iniciação. Os jovens que se divertissem como preferissem. Das Dores
deixa o tal grupo de lado e volta a olhar ao seu redor.
Outra particularidade faz-se notar aos seus olhos, ainda
umedecidos do baque inicial. A quantidade de celulares. Por onde se olhava,
pipocava alguma garota falando ao aparelhinho cheio de fru-fru, um grande
sorriso estampado no rosto. Ou algum rapaz, a vibrar e erguer o dito-cujo aos
céus, como que exibindo um troféu de sua maior façanha, para então voltar ao
diálogo com seu interlocutor. Maria graceja da coisa toda. Quanto para se ver,
quando se decide de fato olhar!
Havia também uma parcela daqueles jovens cabisbaixa,
jogada pelos cantos, olhar perdido. Maria entristeceu-se ao se dar conta deles.
Enxuga os olhos e caminha em direção ao seu carrinho. Era então hora de voltar
ao batente. Ninguém daquela gente que obteve sucesso como ela e ninguém daquela
gente que fracassou e que a entristeceu veio cumprimentar-lhe, tampouco lhe debochar.
Ignoraram-na. Pouco se importara, Maria estava feliz demais com seu feito!
Pegou seu carrinho e pôs-se a puxar pela rua de trás da universidade,
cantarolando qualquer coisa que ouvira no rádio de manhã.
Recordara-se então de sua jornada até aquele momento.
Largou os estudos muito cedo para ajudar à família nas despesas, aos doze anos.
Casou jovem demais e teve cinco filhos. Quantas noites em claro com os filhos
febris! Apesar de tantas dificuldades, sempre manteve o sorriso nos lábios e a firmeza
no olhar. Um olhar de simplicidade, de uma cumplicidade sem igual. Sorrira uma
vez mais quando lhe veio à memória o marco inicial de sua retomada aos estudos,
esperança que nunca havia perdido, muito menos esquecido. Uma apostila
encontrada no lixo. Quem ousaria pensar que tudo recomeçaria ali!
Maria das Dores é catadora de papel e hoje tem 35 anos.
Seus esforços para pagar as inscrições em supletivos, provas e no famigerado
vestibular enchiam-na então de orgulho. Ao mesmo tempo, ocorrera-lhe que havia
ainda problemas pela frente, como pagar as mensalidades da universidade, por
exemplo. Alguém há de lhe dar uma bolsa, certamente. Mas isso não passou pela
sua cabeça, acostumada que estava em nunca conseguir amparo. Sua condição lhe
ensinara a caminhar com as próprias pernas. Cair e se levantar, eis o mote de
sua lição.
Maria, mulher maravilha! Sem conotações à garota ianque
que usa tomara-que-caia estrelado. Por favor. Maria brilha! Um brilho tão
vigoroso e intenso que chega a ser perturbador diante da acolhedora
consternação: "quem me dera...", e da lamuriante cogitação: "ah,
se eu fosse...". Quão agrada ao íntimo agarrar-se às ilusões enquanto se
espera pelo inevitável!
Nota: Assisti a uma entrevista com uma catadora de papel
que de fato tinha passado no vestibular e que tinha voltado a estudar ao
encontrar apostilas no lixo. Todo resto é fictício.
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