sábado, 12 de janeiro de 2013

Maria, mulher maravilha


Olhos ávidos, mãos trêmulas, mordia os lábios de nervoso. Esperou ali, uns metros atrás, contendo sua ansiedade, até a multidão que se amontoava para conferir os resultados dispersar-se. Andou a passadas largas até o muro onde se afixava o edital. Atônita, procurava com rapidez, letra L, letra M, Maria das Almas, Maria das Cruzes... e lá estava: Maria das Dores. Em seu rosto, abriu-se um sorriso.

Mas não era um sorriso qualquer. Não como os abertos mecanicamente de acordo com as normas sociais de cordialidade. Era um sorriso de olhos marejados. Toda a tensão acumulada até aquele momento se desvanecia, transformada em êxtase. Sucesso, após tanta luta! Tanto trabalho sofrido, muito mais do que todos os presentes ali um dia hão de ter.

Maria olha em volta. Vê centenas de pessoas. Centenas de rostos. Concentra-se em alguns rostos jovens, um pequeno grupo. Deviam ter uns quase vinte anos, ostentando camisetas com o emblema de seus respectivos cursinhos, os quais custam os olhos da cara aos pais. Ornamentavam-se com correntes, penduricalhos, brincos, piercings, tatuagens, cabelos coloridos. Engraçado, na juventude de dona Maria não havia dessas coisas. O banho de lama ela até entendia, mas não havia mais idade para uma senhora participar daquele rito de iniciação. Os jovens que se divertissem como preferissem. Das Dores deixa o tal grupo de lado e volta a olhar ao seu redor.

Outra particularidade faz-se notar aos seus olhos, ainda umedecidos do baque inicial. A quantidade de celulares. Por onde se olhava, pipocava alguma garota falando ao aparelhinho cheio de fru-fru, um grande sorriso estampado no rosto. Ou algum rapaz, a vibrar e erguer o dito-cujo aos céus, como que exibindo um troféu de sua maior façanha, para então voltar ao diálogo com seu interlocutor. Maria graceja da coisa toda. Quanto para se ver, quando se decide de fato olhar!

Havia também uma parcela daqueles jovens cabisbaixa, jogada pelos cantos, olhar perdido. Maria entristeceu-se ao se dar conta deles. Enxuga os olhos e caminha em direção ao seu carrinho. Era então hora de voltar ao batente. Ninguém daquela gente que obteve sucesso como ela e ninguém daquela gente que fracassou e que a entristeceu veio cumprimentar-lhe, tampouco lhe debochar. Ignoraram-na. Pouco se importara, Maria estava feliz demais com seu feito! Pegou seu carrinho e pôs-se a puxar pela rua de trás da universidade, cantarolando qualquer coisa que ouvira no rádio de manhã.

Recordara-se então de sua jornada até aquele momento. Largou os estudos muito cedo para ajudar à família nas despesas, aos doze anos. Casou jovem demais e teve cinco filhos. Quantas noites em claro com os filhos febris! Apesar de tantas dificuldades, sempre manteve o sorriso nos lábios e a firmeza no olhar. Um olhar de simplicidade, de uma cumplicidade sem igual. Sorrira uma vez mais quando lhe veio à memória o marco inicial de sua retomada aos estudos, esperança que nunca havia perdido, muito menos esquecido. Uma apostila encontrada no lixo. Quem ousaria pensar que tudo recomeçaria ali!

Maria das Dores é catadora de papel e hoje tem 35 anos. Seus esforços para pagar as inscrições em supletivos, provas e no famigerado vestibular enchiam-na então de orgulho. Ao mesmo tempo, ocorrera-lhe que havia ainda problemas pela frente, como pagar as mensalidades da universidade, por exemplo. Alguém há de lhe dar uma bolsa, certamente. Mas isso não passou pela sua cabeça, acostumada que estava em nunca conseguir amparo. Sua condição lhe ensinara a caminhar com as próprias pernas. Cair e se levantar, eis o mote de sua lição.

Maria, mulher maravilha! Sem conotações à garota ianque que usa tomara-que-caia estrelado. Por favor. Maria brilha! Um brilho tão vigoroso e intenso que chega a ser perturbador diante da acolhedora consternação: "quem me dera...", e da lamuriante cogitação: "ah, se eu fosse...". Quão agrada ao íntimo agarrar-se às ilusões enquanto se espera pelo inevitável!



Nota: Assisti a uma entrevista com uma catadora de papel que de fato tinha passado no vestibular e que tinha voltado a estudar ao encontrar apostilas no lixo. Todo resto é fictício. 

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